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Quando até a morte vira trincheira: o luto sequestrado pela radicalização política

  • Foto do escritor: Solano Ferreira
    Solano Ferreira
  • 22 de abr.
  • 4 min de leitura

Por Joel Elias

Foto: Agência Brasil
Foto: Agência Brasil

A morte de um Papa sempre foi, historicamente, um evento que transcende o âmbito religioso. É uma ocasião que, para milhões de católicos ao redor do mundo, representa um momento solene de introspecção, silêncio e comunhão espiritual. Independentemente das discordâncias doutrinárias, políticas ou filosóficas que um pontífice possa despertar ao longo de seu ministério, sua partida costuma ser acolhida com o respeito que se dedica a um líder que encarna, para muitos, o símbolo máximo da fé cristã. No entanto, o cenário contemporâneo mostra que até mesmo esse gesto de respeito passou a ser motivo de polêmica.


O episódio envolvendo o senador Marcos Rogério (PL-RO), que se manifestou publicamente em pesar pela morte do Papa Francisco, em sua conta no X (antigo Twitter) desencadeou uma reação virulenta nas redes sociais. O que deveria ser uma nota de condolência comum — exaltando virtudes do Papa como fé, fraternidade e justiça — transformou-se em um gatilho para ataques, ofensas e julgamento moral. A resposta negativa, vinda de parcelas de uma militância que se diz cristã, expôs não apenas o grau de intolerância instalado no debate público, mas algo ainda mais preocupante: a substituição progressiva da fé por uma devoção cega ao extremismo político.


Esse tipo de reação não se restringe à figura do senador. O episódio é um espelho de um fenômeno que se espalha como mancha de óleo: a desfiguração da espiritualidade cristã por discursos agressivos, sectários e hostis, motivados por um pertencimento ideológico que não admite desvios, nem mesmo quando a situação exige apenas um gesto de humanidade. Expressar pesar por um líder religioso se tornou, para alguns, um ato de traição. E mais do que isso: um pecado imperdoável dentro da lógica da polarização, onde se perdoa tudo — menos a moderação.


É irônico, porque o cristianismo — em sua essência — é uma religião que prega o amor ao próximo, o perdão, a misericórdia e o acolhimento. Jesus, em seu ministério, foi categórico: “Amai os vossos inimigos” (Mateus 5:44). Ainda assim, nas redes sociais, a morte do Papa foi recebida por alguns com sarcasmo, rancor e desumanidade. Comentários na postagem do senador como “já vai tarde” e “menos um comunista na Terra” não apenas contradizem os valores cristãos como também evidenciam o grau de desumanização a que parte da sociedade chegou.


Essa degradação do discurso público revela algo mais profundo: a espiritualidade foi trocada pela militância. A cruz, símbolo de renúncia, sacrifício e redenção, foi substituída por bandeiras partidárias empunhadas com raiva. O púlpito se tornou palanque. E o altar, uma extensão de trincheiras ideológicas. Aqueles que se declaram defensores da fé parecem cada vez mais dispostos a ignorar os fundamentos dessa mesma fé em nome de uma fidelidade política que não tolera divergências, nem mesmo diante da morte.


O caso de Marcos Rogério é emblemático. Um político que construiu sua trajetória dialogando com bases conservadoras e evangélicas, e que, ao fazer uma manifestação respeitosa em relação ao Papa Francisco, viu-se criticado por seus próprios apoiadores. Tornou-se, ele mesmo, uma vítima do radicalismo que ajudou a alimentar. O que antes era apoio virou cobrança. O que era fidelidade virou julgamento. Em um ambiente onde impera a lógica de “ou está comigo ou está contra mim”, qualquer gesto de empatia pode ser interpretado como fraqueza, ou pior: traição.


Mas a morte do Papa Francisco não foi o motivo da fúria — foi apenas o catalisador de um sentimento que já estava em ebulição. O verdadeiro problema é o estado de idolatria política que tomou conta de amplos setores da sociedade brasileira, especialmente os que dizem agir em nome da moral cristã. Nesse cenário, não há espaço para diálogo, nuance ou humanidade. Há apenas espaço para a guerra, para a caça às bruxas, para o linchamento simbólico de qualquer um que ouse contrariar o dogma do grupo.


A perda do senso de compaixão é talvez o mais devastador dos sintomas dessa radicalização. O cristianismo, que prega a paz como princípio, virou argumento de guerra. A Carta de Paulo aos Romanos aconselha: “Tende paz com todos os homens” (Romanos 12:18). Mas a paz, hoje, parece ser vista com desconfiança. A moderação, com desprezo. A empatia, com repulsa. Em nome da “verdade”, há quem prefira odiar até quem pregou o perdão.


O episódio envolvendo o senador e a morte do Papa Francisco deveria servir como alerta. Não é apenas sobre redes sociais, nem sobre disputas entre correntes religiosas ou ideológicas. É sobre a erosão da civilidade. Sobre a substituição do espírito pelo ressentimento. Sobre uma parcela da sociedade que, diante da morte de um líder espiritual, não consegue sequer suspender por um instante sua máquina de ódio.


A radicalização cobra um preço alto. Transforma adversários em inimigos. Subverte os valores que a própria fé deveria defender. E isola até os seus, quando estes ousam recuar da lógica da intransigência. É uma lição amarga: alimentar a intolerância pode ser conveniente enquanto se está no controle da narrativa. Mas basta um gesto de humanidade para que os mesmos que aplaudiam passem a apedrejar.


No fim, a morte do Papa Francisco não dividiu apenas opiniões — escancarou feridas. Revelou que a espiritualidade foi sequestrada por interesses menores. E que, enquanto a política continuar sendo tratada como religião, e a religião como ideologia, momentos de luto seguirão sendo usados como palanque para disseminar rancor, em vez de promover reconciliação.



* Joel Elias é jornalista e músico atuante na Amazônia brasileira.

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