Quando cala-se uma mulher quem fala é o autoritarismo
- Solano Ferreira
- há 2 dias
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Por Joel Elias
A cena ocorrida que a Comissão de Infraestrutura do Senado protagonizou com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, não foi apenas um embate entre parlamentares e uma ministra de Estado. Foi a exposição crua de um modo autoritário e perverso de fazer política, no qual a escuta é rejeitada e a pluralidade é tratada como ameaça. Quando o senador Marcos Rogério (PL-RO) cortou reiteradamente o microfone da ministra, impediu sua fala, deslegitimou seus argumentos e, ao final, sugeriu que ela “se pusesse no seu lugar”, não afrontou apenas uma adversária política — ofendeu o próprio princípio democrático da interlocução.
A política, como destacou Hannah Arendt, é o espaço da pluralidade, onde a palavra circula e se transforma pelo encontro com o outro. A escuta, nesse contexto, não é gesto de concessão, mas fundamento ético da convivência democrática. Recusá-la é instaurar o monólogo do poder. O que se viu naquela audiência, ao contrário, foi o gozo perverso — para usar uma expressão lacaniana — de silenciar quem ousa romper a lógica hierárquica que ainda rege parte da cultura política brasileira.
A ministra Marina Silva, mulher, negra, ambientalista e símbolo de resistência, não apenas ocupa um cargo institucional: ela corporifica a alteridade. Sua presença desestabiliza uma lógica que se quer uniforme, masculina, branca e autoritária. O ataque que sofreu — inclusive com falas como a do senador Plínio Valério (PSDB-AM), que afirmou que “a mulher merece respeito, mas a ministra, não”, além de já ter declarado em outra ocasião que gostaria de “enforcá-la” — escancara o quanto ainda é incômodo para certos setores ver uma mulher que se recusa a se calar diante da violência simbólica.
Não se trata aqui de blindagem ideológica. O debate público comporta críticas — elas são saudáveis, necessárias e parte da dinâmica republicana. Mas há diferença entre crítica e deslegitimação, entre discordância e tentativa de aniquilação simbólica. Quando um parlamentar impõe sua voz para impedir que o outro se defenda, rompe-se o pacto da escuta que sustenta a democracia. O que sobra é o autoritarismo travestido de debate.
O episódio também obriga o país a olhar com mais atenção para os padrões de comportamento de uma parcela da extrema direita brasileira. Há, nesse campo ideológico, uma recusa sistemática da diferença. Quem não se alinha a seus dogmas — sejam eles religiosos, morais, econômicos ou ambientais — é imediatamente classificado como inimigo. E, ao inimigo, não se concede o direito à fala: silencia-se. Desumaniza-se. Apaga-se.
Esse padrão, que se repete em diversas instâncias e com diferentes personagens, ameaça a saúde institucional. Não apenas por ferir figuras públicas, mas por corroer os próprios fundamentos da política. A escuta, como nos ensina a psicanálise, é condição de existência do sujeito. No campo coletivo, ela é também condição de existência da democracia. Escutar o outro — especialmente quando ele incomoda — é o que permite a reinvenção constante do espaço público.
Marina Silva respondeu aos ataques com firmeza e lucidez: “Só os psicopatas são capazes de fazer isso”, disse, denunciando não apenas a brutalidade do gesto, mas a recusa completa ao diálogo. Sua resistência, nesse sentido, é também pedagógica: ensina que não basta ocupar espaços de poder. É preciso disputá-los, simbólica e politicamente, contra uma lógica que tenta transformar diferença em submissão e dissenso em desrespeito.
O que aconteceu no Senado não pode ser naturalizado. O gesto de calar, humilhar e submeter não se limita ao momento pontual, nem ao embate entre pessoas. Ele revela o desconforto com a diversidade, com o debate real, com a possibilidade de convívio entre ideias distintas. O ataque à ministra é, portanto, um sintoma de algo maior: a dificuldade de certos setores da política em aceitar que a democracia exige escuta, e escuta exige reconhecer o outro como legítimo, mesmo quando ele desafia nossas convicções. Silenciar Marina Silva é tentar silenciar tudo o que ela representa. E isso é não apenas injusto: é antidemocrático.
*Joel Elias é jornalista atuante na Amazônia brasileira.

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