Por Joel Elias*
O Projeto de Lei em tramitação na Câmara dos Deputados, que visa criminalizar condutas atentatórias ao Cristianismo e estabelecer reparação por dano moral objetivo em casos de ofensas públicas à fé cristã, reacende um debate delicado e necessário: até que ponto o Estado pode intervir na proteção de uma religião específica sem ferir os princípios constitucionais de um país laico? A proposta, embora bem-intencionada em sua defesa da liberdade religiosa, traz consigo uma série de questionamentos que não podem ser ignorados, especialmente em um país tão plural e diverso como o Brasil.
Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que a liberdade religiosa é um direito fundamental garantido pela Constituição Federal de 1988. No entanto, o Brasil é um Estado laico, o que significa que nenhuma religião pode ser privilegiada ou protegida de maneira desigual em relação às outras. O projeto, ao focar exclusivamente no Cristianismo, ignora essa premissa básica. Se o objetivo é proteger a liberdade religiosa, por que não estender essa proteção a todas as religiões? Por que não incluir, por exemplo, as religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, que historicamente sofrem perseguições e desrespeito muito mais graves e frequentes do que o Cristianismo?

A realidade brasileira mostra que as maiores vítimas de intolerância religiosa não são os cristãos, mas sim os praticantes de religiões afro-brasileiras. Terreiros são invadidos e destruídos, líderes religiosos são agredidos e humilhados — em casos mais radicais até assassinados —, e seus símbolos sagrados ridicularizados publicamente. Esses atos de violência e desrespeito ocorrem diariamente, muitas vezes sem qualquer tipo de punição ou reparação. Nesse contexto, um projeto de lei que protege apenas o Cristianismo parece não apenas desequilibrado, mas também cego às verdadeiras necessidades de proteção da liberdade religiosa no país.
Outro ponto crítico da proposta é a possível inconstitucionalidade. Ao criminalizar ofensas públicas ao Cristianismo, o projeto pode entrar em conflito direto com o princípio da liberdade de expressão, também garantido pela Constituição. A linha que separa a crítica legítima, a sátira e a manifestação artística de uma ofensa deliberada é tênue e subjetiva. Criminalizar condutas com base em interpretações subjetivas do que constitui uma ofensa religiosa pode abrir precedentes perigosos, limitando a liberdade de expressão e criando um ambiente de censura. Além disso, a laicidade do Estado exige que o poder público não se envolva em questões de natureza religiosa, muito menos que legisle em favor de uma religião específica.
Os defensores da proposta argumentam que o projeto não visa restringir a liberdade de expressão, mas sim promover um equilíbrio entre esse direito e a proteção às crenças religiosas. No entanto, é difícil enxergar esse equilíbrio em uma proposta que trata o Cristianismo como uma religião a ser protegida de maneira especial. O respeito às crenças religiosas deve ser universal, não seletivo. Se o objetivo é combater a intolerância religiosa, a solução não é criar leis que privilegiem uma religião em detrimento das outras, mas sim fortalecer mecanismos que garantam a proteção igualitária de todas as crenças.
Vale lembrar que a religião é, por natureza, um assunto de foro íntimo e subjetivo. Normatizá-la por meio de leis pode ser um caminho perigoso, pois abre espaço para interferências indevidas do Estado em questões que deveriam ser resolvidas no âmbito da sociedade civil. A intolerância religiosa é um problema real e grave, mas sua solução não passa pela criação de leis que protejam uma religião específica. Passa, sim, por uma educação que promova o respeito à diversidade e por políticas públicas que garantam a igualdade de direitos para todos os grupos religiosos.
O projeto, embora bem-intencionado, peca por sua falta de equilíbrio e por ignorar a complexidade do cenário religioso brasileiro. Em um país que se orgulha de sua diversidade cultural e religiosa, é fundamental que qualquer iniciativa legislativa nessa área seja inclusiva e respeite o princípio da laicidade do Estado. Proteger o Cristianismo sem estender a mesma proteção a outras religiões não só é injusto, mas também uma afronta à Constituição. O Brasil precisa, sim, de leis que combatam a intolerância religiosa, mas essas leis devem ser universais, não seletivas. Afinal, a verdadeira liberdade religiosa só existe quando todas as crenças são tratadas com igual respeito e dignidade.
* Joel Elias é jornalista atuante na Amazônia brasileira.
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