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O país chorou seus mortos. Bolsonaro chora por si mesmo

  • Foto do escritor: Solano Ferreira
    Solano Ferreira
  • 25 de jul.
  • 4 min de leitura
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Por Joel Elias*


Enquanto mais de 700 mil brasileiros foram enterrados sem direito à despedida, vítimas de uma pandemia que paralisou o mundo e devastou famílias inteiras, o ex-presidente Jair Bolsonaro apareceu diante das câmeras, em lágrimas. Não por luto, não por remorso, mas por si mesmo. A cena, transmitida em tempo real pelas redes sociais e veículos simpáticos ao ex-mandatário, não comoveu a maioria dos brasileiros. Pelo contrário: gerou revolta. O contraste entre a dor nacional silenciosa e o espetáculo midiático de autopiedade é simbólico de uma liderança política que, ao longo de quatro anos, preferiu o confronto ao diálogo, a negação à ciência, a provocação à responsabilidade institucional.


Na última semana, Bolsonaro desabou em choro público, diante de apoiadores e jornalistas, em um gesto que pareceu mais uma encenação do que um reflexo sincero de arrependimento. Em suas falas, tentou sensibilizar a opinião pública e constranger as instituições democráticas, sobretudo o Supremo Tribunal Federal e o ministro Alexandre de Moraes, a quem acusou de perseguição. O tom emocional do discurso foi rapidamente amplificado por canais de desinformação, mas a tentativa de transformar-se em mártir de uma suposta “caça às bruxas” perdeu força diante da memória coletiva de uma tragédia recente. O gesto, no entanto, não foi isolado: insere-se em uma estratégia antiga de construir uma narrativa de vítima, mesmo quando os fatos apontam para seu protagonismo em episódios de gravidade institucional.


Segundo dados consolidados até abril de 2024, o Brasil registrou 711.380 mortes por Covid-19, tornando-se um dos países mais impactados pela pandemia. No ápice da crise sanitária, entre março e junho de 2021, o país ultrapassava 3 mil mortes por dia, com filas de espera por leitos de UTI e colapsos sucessivos no sistema de saúde. A resposta federal à tragédia foi, em muitos momentos, marcada por uma mistura de despreparo técnico, ideologia extremista e negligência calculada. O então presidente minimizou a gravidade do vírus, rejeitou o uso de máscaras, incentivou aglomerações, promoveu medicamentos sem eficácia científica e, o mais grave, retardou a aquisição de vacinas — mesmo diante de ofertas formais de laboratórios internacionais. A CPI da Covid, instaurada no Senado, apontou 23 pessoas, incluindo o próprio Bolsonaro, como responsáveis por crimes que variam de prevaricação a crimes contra a humanidade.


“Eu não sou coveiro”, disse ele em março de 2020, ao ser questionado sobre a escalada de mortes no país. A frase ganhou contornos trágicos ao se tornar símbolo de um governo acusado de indiferença deliberada. Em outro momento, zombou do número de mortes dizendo: “E daí?”. O desdém pelas vidas perdidas não foi um deslize pontual, mas uma linha coerente de atuação presidencial. A indiferença não foi silêncio: foi política de Estado. Muitos estudiosos classificam esse comportamento como uma forma de necropolítica — a gestão do poder a partir da possibilidade de morte dos corpos “indesejáveis” ao projeto de poder.


Agora, o ex-presidente enfrenta acusações que, somadas, podem ultrapassar 40 anos de prisão: tentativa de golpe de Estado, organização criminosa armada, dano qualificado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e deterioração de patrimônio público. Medidas cautelares já foram impostas pelo Supremo Tribunal Federal: uso de tornozeleira eletrônica, proibição de uso de redes sociais, recolhimento domiciliar noturno e restrição de acesso a representações diplomáticas estrangeiras. São medidas que, mesmo sendo preventivas, representam um marco simbólico na história recente do Brasil: pela primeira vez desde a redemocratização, um ex-presidente é tratado como cidadão comum perante a lei, com responsabilidade jurídica sobre seus atos — inclusive os cometidos durante o mandato.


Para as famílias dos mortos pela COVID-19, a cena do choro público contrasta com o silêncio de um presidente que, nos piores dias da pandemia, rejeitou qualquer gesto de empatia. Não houve luto oficial, não houve discursos de consolo, não houve políticas públicas de amparo às famílias das vítimas. Houve, sim, ironia, omissão e descaso. “Enquanto meus pais agonizavam, ele fazia piada em lives”. Essa frase é Maria Clara Lins, de 37 anos, que perdeu os pais em 2021. Seu relato ecoa entre milhões de brasileiros que, além da dor da perda, enfrentaram a sensação de abandono por parte de um Estado que deveria protegê-los.


Especialistas em direito penal e constitucional afirmam que o processo em curso não é uma perseguição política, mas uma consequência de ações que desafiaram a legalidade e a ordem democrática. Como afirmou o jurista Pedro Esteves, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, “... a democracia brasileira está, neste momento, testando sua capacidade de responsabilizar os poderosos. E isso é um marco”. Segundo ele, o Brasil está diante de uma escolha histórica: permitir que crimes de Estado sejam punidos ou abrir precedentes perigosos para futuras lideranças autoritárias. O caso Bolsonaro, nesse sentido, é emblemático não apenas pelos crimes em si, mas pelo que representa: a tensão entre populismo e instituições, entre o personalismo e a república.


A comoção de Bolsonaro não convence quem ainda lida com as sequelas da pandemia — físicas, emocionais, econômicas. O país que sobreviveu à Covid ainda carrega cicatrizes profundas: há milhares de órfãos, famílias empobrecidas, profissionais da saúde exaustos e milhões de brasileiros com sequelas respiratórias e neurológicas. A tentativa de vitimização do ex-presidente representa, não apenas um desrespeito à memória das vítimas, mas um novo ataque à dignidade da sociedade. A democracia exige memória. E memória exige responsabilidade. Ignorar a história é abrir espaço para sua repetição.


Se o país chorou em silêncio durante mais de dois anos de tragédia sanitária, o que se vê agora é a tentativa desesperada de um ex-líder político em transformar lágrimas em álibi. Mas a verdade histórica é resistente à manipulação. A dor coletiva é mais forte do que a narrativa pessoal. E, neste ponto da história, o Brasil parece disposto a afirmar que ninguém está acima da vida — nem mesmo quem ocupou a cadeira mais alta do Palácio do Planalto.


A justiça que agora começa a ser feita não é apenas um gesto institucional. É um gesto de respeito às famílias. Um tributo aos que partiram. E um aviso: nunca mais.



* Joel Elias é jornalista atuante na Amazônia brasileira.

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